Dossiê O povo da rua: saúde, políticas públicas e comunicação (v. 17, n. 4) out./dez 2023

23-03-2023

Os movimentos geográficos, suas curvas, becos, ruelas, travessas, avenidas, sempre fizeram das ruas local de encantamento, de liberdade, de perversão, mas também de opressão, da vulnerabilidade, do crime, da violência do proibido. A rua pode ser o espaço do sagrado – com ritos religiosos, lavagens, procissões – mas também servem ao profano – a rua festeira, da feitiçaria, do espetáculo, do carnaval. Os espaços da rua movem as existências, os modos de sobrevivências, as sociabilidades. Dessa forma, a rua como objeto de estudo contempla reflexões de inúmeros campos científicos das humanidades.

Tendo-se passado mais de dois anos do marco crucial que parou o mundo – a pandemia da covid-19 – o dossiê busca refletir como a rua, que foi sempre considerada como pretenso lugar da liberdade, passou a ser vista no momento do confinamento, quando se transformou em espaço proibido; e depois da pandemia, quando o agravamento das condições econômicas fez explodir os números dos moradores de rua, sobretudo, nos grandes centros urbanos. Uma rua em múltiplas metamorfoses e suas margens.

Refletir sobre o binômio práticas de ruas e políticas públicas, na articulação com o comunicacional, coloca em cena a rua pensada pelas políticas públicas em saúde como lugar de construção de vínculos a partir da premissa da vinculação comunicacional. Estratégias de melhoria das condições de vida, implicam, por outro lado, numa articulação complexa de ações intersetoriais em saúde, pautadas por efetivas políticas públicas, que não podem prescindir do comunicacional. O agravamento da situação de vida após a pandemia impõe a análise deste mundo, de forma a perceber a multidimensionalidade do vulnerável da população de rua, bem como ações efetivas de comunicação na busca da produção de sentidos do comum humano (SODRÉ, 2014). A comunicação além de propiciar uma relação terapêutica, torna-se meio fundamental das práticas de promoção da saúde.

São muitas as indagações que nos levam a propor um dossiê temático sobre “o povo da rua”, metaforicamente designando aqueles que sobrevivem e fazem das ruas espaços de sobrevivência, que habitam suas calçadas, usam-na como meio de trabalho, de existência, se nutrem dos seus espaços, das suas fronteiras e margens. E, sobretudo, como o comunicacional se articula com estas diversas dimensões nestes territórios de vivências, produzindo sentidos e, ao mesmo tempo, articulando o comum humano, no sentido atribuído por Muniz Sodré (2014).

O que teria restado da rua que já foi inspiradora dos artistas, dos poetas? A rua do século XXI seria outra? A rua gentil que a literatura nos apresentou, que enfeitiçava, a rua do lugar comum, do encontro teria sucumbido? “A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todos os blagues, todos os lugares-comuns” (RIO, 1995, p. 11). Propomos olhar para o que ocorreu a essa rua, lugar de trabalho, do flerte, da diversão da manifestação, dos crimes, das práticas religiosas. Olhar para a rua ocupada pelo vulnerável, pelos que estão à margem. De um povo para quem a rua é a própria existência.

Existem marcos que nos levaram a propor o dossiê, além de um mundo pandêmico com o isolamento social e o esvaziamento das cidades no primeiro momento, e as transformações da rua nos momentos seguintes, adensando o longo processo de mutação dos espaços encantados, dos becos, das travessas, das passagens.

As observações de Walter Benjamin sobre a rua como “a morada do coletivo” revelam o sentido das ruas para uma multidão de sujeitos, esse coletivo que para Benjamin encrusta na paisagem urbana sua inquietude, sua experimentação, sua invenção nas esquadrias das ruas que se avizinham aos seus olhares e gestos: “as ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado que vivencia, experimenta, conhece e inventa tantas coisas entre as fachadas dos prédios quanto os indivíduos no abrigo de suas quatro paredes” (BENJAMIN, 2009, p. 468). Um dos eixos centrais da reflexão privilegia a rua como local de presença de sujeitos em situações de vulnerabilidade social para os quais se destinam políticas públicas. Entre elas destacam-se a de redução de danos, uma vez que a rua obriga à construção de ações e reações destinadas a sujeitos em situação de vulnerabilidades.

A rua abarca o humano, a saúde, o trabalho, os movimentos de exclusão, o urbanismo, a ação pública de políticas públicas, o olhar para a vulnerabilidade, mas, sobretudo, o comum humano e seus vínculos. A proposta do dossiê particulariza com centralidade os seguintes subeixos temáticos, privilegiando a relação comunicação, psicologia e saúde.

 

  • A rua como território de vulnerabilidades: pessoas em situação de rua e as políticas públicas; a redução de danos; consultório de rua;
  • As políticas públicas em saúde, as práticas de rua e suas articulações com ações públicas;
  • A rua como espaço de trabalho e de vida: os ambulantes, as pessoas profissionais do sexo, a população LGBTQIA+;
  • A rua como palco dos espetáculos;
  • A rua como espaço da criação artística: artes em murais urbanos e como personagem literário;
  • As produções de sentido e a construção do comum humano nos territórios das vulnerabilidades;
  • As articulações entre práticas de rua, políticas públicas e os campos da informação e da comunicação em saúde;
  • Fronteiras e barreiras que se constroem na rua. A fronteira entre o lugar da liberdade e da opressão. Metamorfoses e margens;
  • A rua como fonte de perigo: ameaças à saúde e discursos sobre a exposição e riscos na rua;
  • A casa e a rua nas epidemias: controle e exclusão social;
  • O isolamento e o confinamento como políticas de prevenção de saúde: favorecimentos e descriminações.

 

Editores convidados: Maria Lívia Roriz (Universidade do Porto/Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Alexandra Oliveira (Universidade do Porto).

Prazo de submissão: até 31 de maio de 2023.

Estimativa de publicação: v. 17, n. 4, outubro/dezembro de 2023.

Ao submeter o trabalho, por favor, use a categoria Dossiê O povo da rua: saúde, políticas públicas e comunicação.

 

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, 1995.

SODRÉ, Muniz. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes, 2014.